sábado, 19 de novembro de 2011

Inverno

Primeira semana

Eu até tentei falar uma bobagem à toa, qualquer coisa que pudesse te fazer rir, como sempre acontecia entre a gente. E por mais que tenha sido engraçada a minha piada, aquele riso gostoso e frouxo não saiu. Ao contrário. Não escuto absolutamente nada e é esse inaudível barulho do silêncio que me irrita. E me entristece, profundamente. E as minhas mãos estão tão frias, tão geladas, assim como havia sido o nosso encontro de semana passada, aquele que, no fundo, sabia – seria inesquecível. Estou sim, ao teu lado, mas não mais posso te tocar, sentir o suave aroma do teu perfume, o teu toque que eriça meus pelos e despenteia meus cabelos. Então pra quê essa proximidade, meu Deus? Nem sei mais o que faço aqui, a minha visita serve apenas como uma forma de tortura. Autossofrimento. Desde a última semana, os dias passam como se fossem anos e é por causa dessa maluquice que eu também envelheço. É um desgaste físico e sentimental, que não levam apenas o frescor da minha juventude, mas também a minha imensa vontade de viver. Não dá mais pra ficar vivendo só de lembranças e incertezas, afinal, a única certeza que tenho é a de que um dia o sol descobre-se das nuvens. Lembro do vento cortante que cruzou meu caminho quando nos despedimos. É o mesmo vento que agora nos vela. Vela nossa história, sem presente e sem futuro. Vela, mais uma vez, a despedida. Tchau, semana que vem eu volto.


Segunda semana

Sei que essa insistência em te visitar é vã. Mas, ao mesmo tempo, preciso estar mais perto de ti. Tudo culpa da física. Nesses dias, é essa a ciência que realmente me importa. Fujo do espiritismo e de outros estudos não exatos. Meu corpo padece longe de ti e suplica pela tua ausente presença. Fria e profunda presença. Resolvo então ir te encontrar, caminhando; assim, demoro mais para chegar e te deixo com o gostinho da espera. Meus passos são pequenos e tímidos e a chuva que nesse instante molha meu corpo me abençoa. Abençoa minhas decisões e limpa minhas dúvidas: tomei a decisão correta. Chego, no mesmo lugar de sempre. E você aí está. A chuva me encharcou, sim, mas não ligo. Sinto-me mais leve, embora as roupas estejam pesadas por causa da água acumulada. Roupas. Que roupas? Nos nossos encontros mais quentes, elas não faziam falta alguma. Só que o momento de hoje é diferente. Tudo tão formal, tão monótono; serve-me como um escape, uma fuga de mim e um desvio à minha dor. Sento ao teu lado. Resolvo te contar da excelente proposta de emprego que recebi e de como eu relutei em aceitá-la. Falo também daqueles vizinhos chatos que brigaram de novo na madrugada e acordaram todo quarteirão. Conto da minha indignação perante o aumento abusivo dos preços no supermercado. Tudo conversa jogada fora. Só quero tornar aquilo tudo mais natural. Só quero que o tempo passe mais rápido. Afinal, eu sei, já é hora de ir embora. O sol voltou.


Terceira semana

O ventinho é morno, nem parece inverno. Dia de domingo, eu acho. Estamos tão longe dos nossos hábitos que na realidade nem sei onde, de fato, estamos. Você me puxa pela mão e me faz correr contigo. A paisagem, um tanto bucólica, é inacreditavelmente bela. A relva, crescida, encontra-nos pelos joelhos. Dispenso minhas luvas e meu cachecol, seguro firme na mão que sempre foi minha segurança, e parto. Mais rimos do que corremos, é verdade. Nem importa mesmo. Esse mundo desconhecido, imenso e lindo é nosso e de mais ninguém. Você me abraça tão forte, como nunca fez; culpa minha, eu te acostumei mal com todos os meus carinhos primários. Ouço de longe uma voz que chama meu nome. Você jura nunca mais me abandonar e me beija. Fala também de como sua vida mudou desde que eu estava contigo e de seus audaciosos planos para nosso futuro. Quando ouço essas palavras, baixo os olhos e enrubesço. Meu nome, novamente. As abelhas cantam uma ciranda antiga e rodopiamos, para prestigiá-las. Futuro. Alguém chama meu nome. Ficamos ali, abraçados, depois sentamos para contemplar o sol se pondo. Futuro. Um clarão forte me cega. Uma força maior que as minhas me suga para a realidade. Ouço meu nome, mas dessa vez, a voz é familiar: minha mãe acaba de me acordar e de assassinar meu sonho de amor. Dormi demais.


Terceira semana e alguns minutos depois

Ela fala a mais de vinte minutos. Faço questão de cronometrar no relógio. Não tenho outra conclusão a chegar se não a de que ela é louca. Nenhuma pessoa, em seu juízo perfeito, falaria coisas no mesmo nível em que ela fala agora. Seu olhar não me parece preocupado, como ela faz questão de dizer que está. Parece, como sempre pareceu, um olhar de gente que gosta de se sentir superior aos demais e que usa dessa doce ilusão para humilhá-los. Será ela mesma? Não a reconheço. Claro que ela já havia me passado outros tantos sermões ao longo da minha vida, mas igual a esse, nunca vi. Será que ela não notou que eu já cresci? Para as mães, os filhos nunca crescem, eu sei, mas mesmo assim, ela ousa me dizer que quem não está bem das faculdades mentais sou eu. Petulância. E o pior: usa seu nome, por várias vezes. Mesmo a tendo proibido, logo na primeira citação, ela insiste, incansavelmente. Tudo isso é muito desconfortável e irritante. Mas a deixo falar. Ninguém pode dizer que ajo com ingratidão, eu sei, ela me colocou no mundo e me criou, me deu amor e que não deixou nada faltar a mim e aos meus irmãos. Discurso pronto e ultrapassado. A melhor resposta que posso dar aos seus devaneios é meu silêncio. Eu só quero paz e você ao meu lado. Seu nome outra vez e com ele, uma lágrima escorre em meu rosto. Acho que já chega, não é? Vinte e cinco minutos ainda não foram suficientes? Essa conversinha que quer me ajudar não me ajuda em nada. Imploro que se cale e me deixe descansar. Preciso te ver ainda hoje. Com ou sem chuva, no frio ou no calor. Nada, absolutamente nada vai me impedir. Nem mesmo minha mãe.


Décima-quinta semana

Tento diversas vezes abrir os olhos, mas tenho a impressão que minhas pálpebras estão coladas. E uma insuportável sensação de ressaca. É uma sensação nebulosa, parece que meu coração sangra. Tento mexer os braços, e com dificuldade, tateio meu peito. Tudo aparentemente normal. Onde estou? Busco forças estranhas para enfim abrir os olhos e me deparo com um quarto branco. Um armário branco. Uma porta branca. Uma mesinha de cabeceira de marfim. Uma janela branca. E um lindo dia que se desenha através dela. Só depois de olhar para o meu pulso furado é que recordo. Internação. Há quanto tempo estou aqui? Uns três meses, eu acho. O inverno já passou. Eu e minhas abstrações. Mas como é difícil, santo Deus, aceitar a morte. Compreender o fim. Continuar. Partir do interrompido. Andar com a solidão. Por quê? E por que levar pessoas tão queridas, essenciais às outras? Dizem teus seguidores que tu não dás o peso que cada um não possa carregar, mas poxa, me ajuda então a levar essa tonelada. Ou então me leva, me leva para junto de meu amor, que visitei periodicamente, logo após nosso adeus. Me leva, me leva, ou não, melhor, devolve minha loucura, minhas alucinações, a psicose, devolve! Quero sonhar com os olhos abertos, quero acreditar na eficiência de uma presença distante. Devolve meus delírios, o vento no rosto, a as mãos dadas, os braços amparados. Deixa-me ser feliz. Ser feliz. Ser feliz com a ilusão. E faça isso antes do Natal chegar.

Vinícius Dill Soares


Um comentário:

  1. Fiquei sem palavras... Simplesmente encantador... Envolvente... Mais uma vez parabéns!!!!

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